Em uma adaptação literária espera-se algumas mudanças na obra original. É de se esperar que a obra televisiva seja menor, menos detalhada e até mesmo que abandone alguns plots menos importantes para o enredo. Na verdade, esse desapego em relação ao material original é necessário, uma vez que a roupagem televisiva é bem diferente da literária. Podemos até parecer repetitivos quando abordamos esse assunto, mas não há forma melhor de se começar a falar sobre The Devil’s Mark se não elogiando, mais uma vez, a adaptação de Outlander. O show complementa a obra original inserindo detalhes e explicações, sem deixar de ser extremamente fiel à fonte. Tivemos episódios, como The Way Out e Both Sides Now que trouxeram material que não havia no livro de Diana Gabaldon, como o embate entre Claire e o padre Bain e o olhar sobre a vida de Frank após o desaparecimento da esposa. Nada, no entanto, apresentou tanta mudança e rearranjo como esse último episódio exibido. E, se em um primeiro momento, essas alterações puderam causar espanto, ao final do capítulo, cada novo detalhe potencializou o terror, a ira e a beleza da situação que estava sendo desenvolvida em nossa frente. O julgamento das bruxas e o desabafo de Claire sobre sua verdade elevaram Outlander a um novo patamar, implodindo a lógica de sua narrativa e entregando, talvez, o melhor o episódio da série, através de um ato de desespero e sacrifício de uma figura instigante de seu universo: Geillis Duncan.
Que todos poderiam pensar que Claire e Geillis eram bruxas é compreensível (apesar de não ser justificável). Todos os povos desconfiam de quem apresenta características a frente de seu tempo. Isso não é incomum. Em cada um dos momentos históricos, das primeiras pessoas a apresentarem pensamentos inovadores e libertários, certa parcela foi abraçada por cenários políticos favoráveis ou por meras coincidências. A maioria das pessoas que apresentaram um olhar diferente, no entanto, enfrentaram hostilidades e injustiças em graus variáveis revoltantes. O conhecimento sobre ervas e suas funcionalidades, tônicos, poções de cura e venenos, era muito útil e valorizado no século XVIII. Porém, a Igreja ainda tinha uma força predominante e sufocante sobre a ciência e, caso esse conhecimento não entrassem em compasso com seus interesses, as reações mais bárbaras poderiam ser colocadas em prática. E, assim, um dos traços mais brutais e obscuros da história mundial teve início: a caça às bruxas. Tudo aquilo que não podia ser explicado pelo rudimentar conhecimento da época, juntamente com a adoração a entidades pagãs, era taxado como bruxaria. Se houvesse uma mulher muito bela em uma região, um grupo de mulheres poderia acusá-la de ter feito um feitiço pela beleza eterna, ser julgada e queimada pelo pecado da beleza. Se pegarmos a questão religiosa e analisarmos o histórico de julgamento de bruxas na idade média, fica fácil concordar com alguns autores que fazem a relação entre a briga protestante e católica com a caça às feiticeiras. Ambas as vertentes cristãs consideravam as ceitas pagãs como a manifestação do diabo na terra, falavam sobre uma conspiração e o envenenamento do reino de Deus através da magia. Seja isso uma crença verdadeira ou uma forma de terrorismo para atrair fiéis, a verdade é que alguns historiadores contemporâneos acreditam que em todo mundo, entre os séculos 14 e 18, foram mortas mais de dez milhões de pessoas acusadas de bruxaria e paganismo.
Tendo um plano de fundo histórico tão rico e controverso em mãos, Outlander fez uso de todo o poder de seu roteiro para abraçar e brincar com os diversos aspectos vinculados aos julgamentos das bruxas. Por isso que a primeira questão que conseguimos absorver dos primeiros momentos da acusação das duas mulheres é a hipocrisia das clientes de Geillis, mulheres cristãs. Entre as pessoas que clamavam pela morte de Claire e a Sr. Duncan, estavam aqueles que recorreram às facilidades oferecidas pela magia da Bruxa. A hipocrisia está presente em meio a todas culturas. Assim como o sincretismo de crenças. O depoimento da mãe do bebê Changeling é uma prova que o catolicismo aceitava aquilo que lhe era conveniente, de forma a acomodar o povo em suas igrejas sem refutar as crenças que escolheram e acreditavam lhe dar um conforto frente às adversidades da vida. As fadas podiam roubar crianças e ter suas próprias colinas, mas as bruxas, aquelas mulheres que atraem pessoas para suas crenças e visavam saciar os desejos dos fies da igreja, deveriam ser queimadas. Por isso a atuação de advogado de defesa de Ned Gowan foi tão brilhante. Ele sabia o terreno sensível e explosivo em que estava pisando. E, com esse conhecimento, ele soube exatamente como usar o humor para expor a hipocrisia, as intenções veladas ou a mesquinhez das acusações sendo lançadas pelas pessoas naquele tribunal. Apesar de expor uma atitude debochada e desenvolta em boa parte do tempo que passou defendendo, Gowan mantinha um olhar preocupado e de urgência, pois sabia que quanto mais testemunhas se apresentassem e mais o tempo passasse, mais difícil seria reverter a opinião popular frente ao espetáculo da incineração dos corpos de duas mulheres em praça pública. E essa foi a beleza da atuação estupenda de Bill Paterson, que soube ministrar com grande destreza todas as camadas psicológicas em ação naqueles momentos perigosos do julgamento, brilhando especialmente no momento em que usa sua sensibilidade para expor a culpa e acalentar a mãe do bebê changelling.
Mas então veio o depoimento do influente padre Bain. Que show de retórica a desse religioso que soube transformar um ato de cura de Claire em uma ação diabólica (méritos para a astúcia ímpar da atuação de Tim McInnerny). E, mesmo que alguns venham a sentir o incômodo pelo fato de Laoghaire e Bain terem sido unilaterais e vilanescos de forma exagerada, havia a necessidade de termos os maldosos como acusadores e a mocinha como a julgada. O clichê, aqui, funcionou muito bem, principalmente por ter permitido que nos distanciássemos um pouco do sentimento de desconfiança predominante quanto a Geillis e pudéssemos torcer por ela também, além da protagonista. O sentimento de dualidade no julgamento, o fato de conhecermos Claire e mantermos a desconfiança pela escocesa, ao mesmo tempo em que éramos atingidos pelas acusações destinadas a ambas e o sentimento de indignação foi incrível e digno da obra de Diana Gabaldon.
Após o depoimento do padre Bain, a situação perdeu maleabilidade por parte de Gowan e ele emite a proposta final: salvar apenas uma e incriminar a outra. E, naquele cômodo, quando as duas ficaram a sós, é que as cartas começaram a ser colocar na mesa de forma mais clara. A escocesa precisava tirar suas dúvidas, confirmar a origem de Claire, mas a resposta que recebeu não era a que queria. A inglesa foi parar no passado em razão de um acidente, durante a lua de mel com o marido. Não tinha agenda, ambições nem motivos para alterar o rumo dos acontecimentos no século XVIII. Geillis sabia que estava além da defesa e da salvação de qualquer advogado e que queimaria, de uma forma ou de outra, na fogueira. Se teria que se sacrificar que fosse por uma causa, pelo seu país, que morreria de mente limpa, tendo a certeza de que faria tudo novamente, sem titubear. Mesmo diante do fato de Duncan ser assassina e de sua crueldade em torno do marido, Claire escolheu não abandonar a amiga (sim, apesar de tudo, a escocesa era a figura feminina mais próxima que a inglesa teve de uma amiga naquele cenário). A Sassenach, mesmo diante do desespero, se apegou pelo próprio caráter e preferiu morrer presa a seus princípios do que mentir para salvar a própria vida. E, então foi a vez da soberba Lotte Verbeek tomar a série para si e, em uma cena de beleza incomparável, expôs o terror, o desespero, a pena, a coragem, a fúria e o sacrifício de Geillis pela Sassenach, gritando ser amante de Satã, estar grávida dele, enquanto revelava para Claire que sua marca do diabo, na verdade, era a cicatriz da vacina contra a varíola e que ela era do século 1968, um futuro posterior ao da inglesa.
Em meio ao açoite advindo da recusa de Claire de incriminar a amiga, Jamie surgiu no tribunal, trazendo um raio de esperança inesperado. Sua fala que questiona a autoridade dos julgadores perante o voto feito no altar foi uma das mais marcantes do livro e foi mantida na série. Diante do ato de misericórdia de Duncan, eles conseguiram escapar. E, então, acompanhamos uma cena entalada na garganta da Sassenach e do público: o desabafo da inglesa sobre sua verdade. A reação de Jamie à verdade foi digna de um homem sensato e apaixonado, apesar de termos primeiramente pensado que essa parte exagerada no livro (Como é possível que um homem do século XVIII aceite tão bem a história contada?). Mas, na verdade, as crenças e as histórias sobre as colinas das fadas e as demais lendas da época tornavam mais fácil para um highlander, como Jamie, acreditar na verdade de Claire do que uma pessoa comum da época. Mas nada é mais comovente que sua reação ao constatar a surra dada na esposa e ao saber de Frank. A comoção pelo outro homem da vida da esposa é, de certa forma surreal, mas crível dentro da força da confiança e do sentimento do rapaz. Ele não pensou no ciúme e não diminuiu sua opinião quanto à esposa frente a existência do outro, mas sim constatou a dificuldade que deve ter sido para Frank perder sua amada sem explicações.
A volta a Craig na Dun foi um banquete entregue aos fãs dos livros. Um momento puramente emocional. Claire tinha, ali, que decidir retornar para seu tempo ou ficar no século XVIII, entre Frank e Jamie. No futuro, ela tinha tudo e no presento o que o mundo podia lhe oferecer? Um homem que a amava. E ela escolhe isso, uma rima poética belíssima com o desenvolvimento a personagem. Uma mulher que se sentia diferente após a guerra, objetiva em sua forma de lidar com o universo que a cercava e de opiniões fortes e pragmáticas conseguiu abraçar as próprias emoções e se entregar à possibilidade de uma nova vida. E, assim, a canção da moça que se foi ganhou uma estrofe que ilustra lindamente o amor encontrado fora de seu tempo. Assim como o marido, deu um salto de fé, colocou suas emoções em primeiro lugar e decidiu viver o amor encontrado no passado.
E, dessa, Outlander implodiu sua narrativa. Claire não foi a única pessoa a voltar no tempo. Na verdade, sua volta no tempo foi incidental, a de Duncan não. É possível voltar no tempo voluntariamente. Não existe mais a benevolência do clã Mackenzie. O julgamento retirou a segurança e o conforto do clã do cerne da história. Collum não é mais aliado e o único futuro do casal reside em Lallybroch. Não há mais Frank, nem 1945, somente Claire, Jamie e vida que querem tentarão construir juntos.
P.S.: Existe alguma explicação lógica no universo para o fato de existir uma trilha sonora tão linda, emocionante e enebriante como a de Outlander. Bear McCreary merece todos os prêmios possíveis. E a balada triste e então romântica que embalou os últimos minutos do episódio foi o ápice da riqueza do trabalho do compositor.
P.S.: Em termos práticos, se Claire retornasse ao futuro, seria, talvez, mais difícil que se manter no passado com Jamie. Depois de tanto tempo desaparecida, será que Frank manteria a crença na fidelidade da esposa? Como ela explicaria seu desaparecimento? Caso o Randall a rejeitasse, ela poderia ficar marcada como adúltera. E isso são somente algumas divagações sobre seu retorno, caso tivesse acontecido.
P.S.: SOMENTE PARA QUEM JÁ LEU OS LIVROS – Na série a cena em Craig na Dun ficou completamente longe do concreto. Não vemos Jamie e Claire constante a realidade de que era possível viajar no tempo ali. Diante disso, a crença do rapaz nas palavras da esposa se torna ainda mais tocante, porque não parte de algo que ele viu e constatou.
P.S.: SOMENTE PARA QUEM JÁ LEU OS LIVROS – Fez falta, na última cena, a declaração de Jaime, quando ele confessa ter sido mais difícil descer a colina sem implorar para que Claire ficasse do que aguentar o castigo imposto por Black Jack. Mesmo assim, a forma lírica que a situação em Craig Na Dun se desenrolou compensou essa fala belíssima.
P.S.: “On your feet, soldier! Take me home to Lallybroch”.
P.S.: Lotte Verbeek se colocou como forte candidata a indicação para o Emmy nesse episódio.
P.S.: Para uma análise mais específica sobre Geillis Duncan, clique aqui (http://ift.tt/1DNQ1kX)
Por: Série Maníacos
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