Ontem eu fui dormir achando que tudo não passava de um sopro de extrema direita que iria perder a força. Hoje eu acordei com o furacão que passou. Eu não acreditava que o Reino Unido ia realmente votar para deixar a União Europeia. Era uma ideia tão, mas tão estapafúrdia, que não tinha como acontecer. Não há um argumento lógico para aquilo. Nem todas as críticas do mundo aos problemas da União Europeia justificariam isso.
Mas eu fui inocente em achar que o discurso de medo, de ódio, não podia vencer. Inocente, e agora desiludida, junto com os jovens ingleses, os londrinos e os escoceses. Até na vitória do Trump eu não duvido mais. Eu não moro no Reino Unido e nem tinha planos de morar tão cedo. E eu nem tenho um passaporte europeu para chamar de meu. Mas há quase dois anos sou imigrante na Europa, estudando em Portugal, considerando se quero construir meu futuro aqui depois de terminar o mestrado, ou voltar para o Brasil. Imigrante sim, porque eu acho até o uso da palavra expatriado um tremendo preconceito: é tentar dar um nome mais bonitinho para não nos igualar aos “outros”.
Que “outros” são esses, afinal?
Os outros são o principal motivo que levaram 52% dos britânicos ao voto para deixar a União Europeia. A verdade é que a campanha pelo Brexit só ganhou força mesmo quando saiu do discurso econômico furado para o discurso nacionalista e anti-imigração – recomendo a leitura desse artigo de um jornal português.
Eles não querem saber das “tropas de refugiados” que são “potenciais terroristas” (mesmo sendo 51% de crianças fugindo de zonas de guerra.). Eles não querem saber dos imigrantes da própria Europa, vindos principalmente dos países mais pobres do Leste Europeu, que usam dos acordos de livre mercado e livre circulação da União Europeia para trabalhar e ter acesso aos direitos sociais como qualquer inglês.
As grandes falácias nesse discurso valem não só para o Reino Unido, mas para qualquer país europeu que está vivendo a ascensão de uma visão muito perigosa. A mesma extrema direita que é a favor de medidas de austeridade – essas que querem cortar verbas do sistema de saúde, ajuda financeira a desempregados, desabrigados, aposentados, etc – usa descaradamente o argumento de que a culpa é dos imigrantes, que é por causa deles que esses sistemas sociais estão falindo. Dizem que o dinheiro gasto com a União Europeia seria melhor empregado nesses sistemas sociais que eles preferiam erradicar completamente em favor do livre mercado. Não querem ficar “pagando a conta” para os mais pobres – um discurso bem parecido com o que rola no Brasil, aliás.
Sabe qual é a taxa de desemprego do Reino Unido atualmente? 5%, a menor desde 2005. Mas mesmo assim eles têm medo da imigração, que vai roubar seus empregos. Ahn? Basicamente, sem imigração e com uma população envelhecida, vai é faltar gente para trabalhar. Para embasar meu argumento, um exemplo de Portugal: a taxa de desemprego aqui é bem mais alta, chega a uns 13%. Porém, quem preenche as vagas de trabalho na agricultura são imigrantes. Indianos, búlgaros, nepaleses… Numa entrevista para minha dissertação, a funcionária de uma associação de desenvolvimento local disse: “temos nas mãos uma grande oportunidade. Nossa população está envelhecendo. Os imigrantes vem para cá não só trabalhar, eles têm filhos, que frequentam as escolas, que revertem o quadro do envelhecimento na região”.
Sempre dá para escolher entre o discurso do medo e o discurso da oportunidade. Eu sei que entender essa economia cruel, confusa e completamente imprevisível do mundo globalizado em que vivemos é complicado. Mas não dá para olhar para as crises econômicas e simplesmente colocar a culpa na parcela da população que é mais pobre e mais excluída, só porque eles são “outros”, porque são diferentes. Esse caminho do medo só gera discurso de ódio.
O mesmo discurso de ódio que trouxe o mundo até a Segunda Guerra Mundial. A guerra que destruiu a Europa e levou a criação da União Europeia em primeiro lugar. Os resultados do referendo britânico não são terríveis só porque a economia deles agora está em risco de uma recessão sem precedentes e isso claramente já está afetando o sistema financeiro do mundo todo. Ou porque os imigrantes que moram lá já não se sentem mais acolhidos (recomendo ler os textos da Helô Righetto e da Liliana Stahr, blogueiras brasileiras que moram lá). A questão é que todos os partidos de extrema direita em ascensão no continente estão colocando as asinhas de fora. Quando o lado vitorioso compactua com racismo, xenofobia, machismo e homofobia, é muito difícil ter esperança.
Have we tried unplugging 2016 waiting ten seconds and plugging it back in?
— dongwon (@dongwon) 24 de junho de 2016
“Nós já tentamos desligar 2016, esperar 10 segundos, e ligar novamente?
Estamos vendo isso acontecer no mundo inteiro e no nosso próprio país. Nessas horas não dá para pensar em viagem, em preço da libra e do euro, nem em mudar para Lua. Não tem lado positivo nessa história – mesmo ainda nem sabendo os reais desdobramentos disso, porque não se completaram nem 24h.
Não há conquistas que não possam ser perdidas. Não há paz que não possa acabar em guerra. Hoje é mais um dia de 2016 em que eu estou horrorizada com o mundo, assustada com o futuro e triste com as perspectivas que temos daqui para a frente.
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Por: 360meridianos
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