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A barreira da linguagem

Outro dia eu li um texto gringo que dizia que os brasileiros têm mania de inventar palavras. Eu sempre gostei de inventar palavras, mas nunca tinha me dado conta de que esse era um traço cultural. Na mesma tarde minha mãe me enviou uma mensagem em que me chamava de “chumbrega” e eu ri. E me lembrei de todas as palavras que eu e meus amigos inventamos em nossas conversas. Palavras que se tornam nossas e que expressam perfeitamente coisas que não poderíamos expressar de outra forma. Nesse momento, fui invadida por esse sentimento que é tão próprio dos falantes do português: senti uma saudade danada de falar com quem fala a minha língua.

Eu amo Barcelona, mas às vezes é difícil estar aqui. O pensamento me ocorreu meses antes, durante uma das minhas viagens diárias de trem entre a universidade e o centro de Barcelona. Eu ia com a cabeça encostada na janela, cansada depois de um dia longo. Metade dos meus colegas de classe pegaram o mesmo trem e todos tagarelavam sobre um assunto qualquer. Eu não queria participar da conversa. Minha cabeça doía e eu não tinha a menor intenção de entrar em um debate em espanhol. Ter que pensar em espanhol. Argumentar em espanhol. Escutar e interpretar em espanhol. Depois de oito horas pensando, falando, argumentando e interpretando em espanhol.

De tudo o que eu tive que me adaptar na Espanha, a língua é de longe a mais difícil. Ter que que me relacionar, construir novas amizades e ter debates de nivel acadêmico em outro idioma é sempre um desafio, mesmo considerando que tenho um bom nível de espanhol. Eu posso assistir minhas aulas, pedir comida em um restaurante, ter uma conversa sobre política ou literatura na mesa de um bar. Cometo erros, meto palavras em português onde não devia, invento outras palavras quando não estou segura de como dizer. Mas eu sei que no fim todos me entendem e, quando não entendem, encontramos uma forma fazer de entender. Espanhol e português são bastante parecidos, a comunicação é quase que garantida mesmo que eu não tivesse um bom domínio do idioma. Por isso, me corrijo: a língua em si não é tanto o problema. A dificuldade é apreender a linguagem.

espanhol-uba

Se pessoas são ilhas, ter que expressar-se em outra língua é como estar longe do nosso arquipélago. A linguagem é um fio que nos conecta e, quanto mais ela nos falta, mais difícil é alcançar o outro lado. E isso é o mais complicado. Saber que tem uma parte de você que seus novos amigos não podem enxergar. Sentir-se frustrado quando você é tomado por sentimentos que, como uma criança pequena, não consegue expressar com exatidão. Ou quando você pensa em algo super engraçado ou interessante para dizer, mas as limitações do seu vocabulário fazem soar besta.

O complicado é saber que você não poder ser criativo na hora de se expressar porque você não tem as ferramentas necessárias para ser criativo naquela língua. Porque criatividade tem a ver com romper com as regras e que não dá para romper com regras que você não domina bem sem soar como um equívoco. É saber que ninguém vai entender suas referências e que você mesmo não entende completamente as referências dos outros. Como não poder citar o meme do momento. Ou aquele programa de televisão dos anos 1990.

Palavras a gente decora, substitui, consegue até adivinhar. São as sutilezas da linguagem que nos fazem perder os sentidos e significados em meio às traduções. Sutilezas que são impregnadas de cultura, de vivências, de histórias. As ironias, as piadas, as palavras inventadas, as formas mais exatas de expressar um sentimento, a palavra perfeita para ser empregada em cada situação. É difícil transportar tudo o que sentimos e pensamos a outro idioma porque nossa identidade é construída em nossa língua materna. E se somos aquilo que sentimos e pensamos, uma parte da nossa personalidade fica inacessível em outras línguas. Esse é o maior desafio.

Fotos: Shutterstock

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Por: 360meridianos

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