A morte trágica do pai, um cachorro herdado e um mistério envolvendo o avô. Esses são alguns dos ingredientes de Barba Ensopada de Sangue, romance do escritor Daniel Galera. Nascido em São Paulo, Galera tem origens mais ao sul: a família do escritor é do Rio Grande do Sul e ele viveu boa parte da vida em Porto Alegre, cidade que considera casa.
Origem que aparece e reaparece na narrativa. “Vê um nariz batatudo, reluzente e esburacado como uma casca de bergamota”, diz a primeira frase do livro, em que o personagem principal – que não é nomeado na obra – narra o último encontro com o pai, em Porto Alegre. É nesse dia que ele descobre a história do avô, um gaúcho chamado Gaudério que, nos anos 70, resolveu morar em Garopaba, no litoral de Santa Catarina. Lá, teria sido assassinado, num crime sem autor. Ou com vários.
Gaudério é um nome que, em bom gauchês, é usado para falar de alguém que “seja morador do campo, de hábitos rudes, errante” ou “sinônimo de homem sem lei nem rei”, enfim, um habitante do sul do país e fruto do passado turbulento de uma região que faz fronteira com Uruguai e Argentina. A escolha do nome do avô do personagem central não é, portanto, corriqueira.
Depois da morte do pai, o personagem resolve se mudar para Garopaba e investigar a história do avô, que ele não conheceu, mas com quem ele guarda muitas semelhanças. Professor de educação física e nadador profissional, a mudança acaba sendo também uma forma de superar uma ex-namorada, uma relação conflituosa com o irmão e outra também difícil com a mãe.
Praia da Silveira – Garopaba (Antônio João, Wikimedia Commons)
E, por mais que eu tente evitar spoilers, um detalhe importante precisa ser dito: o professor de educação física tem prosopagnosia, uma doença rara que impede que a pessoa reconheça rostos – ele não reconhece nem o próprio. E os outros personagens que aparecem na trama são reconhecidos por objetos e pelo contexto ao redor, o que torna o texto e as situações muitas vezes bem descritivas.
O início do livro, logo depois da bergamota, já demonstra isso. E que começo. “Boca estranhamente juvenil entre queixo e bochechas tomados por rugas finas, pele um pouco flácida. Barba feita. Seus olhos percorrem todos os quadrantes desse rosto no intervalo de uma respiração e ele pode jurar que nunca viu essa pessoa na vida, mas sabe que é seu pai porque ninguém mais mora nessa casa desse sítio em Viamão e porque ao lado direito do homem sentado na poltrona está deitada de cabeça erguida a cadela azulada que o acompanha faz muitos anos”.
A cadela é Beta, que merece atenção. Com ordens de sacrificar o cão depois da morte do pai, o professor resolve ignorar o pedido e adota Beta, que se muda com ele para Garopaba. É Beta quem dá um senso de responsabilidade ao personagem, que passa a cuidar da cadela no meio do caos que sua vida se tornou, das decepções, dos relacionamentos rápidos e sem muito futuro e, claro, das investigações que ele mesmo faz sobre a passagem e a morte do avô pela cidade catarinense.
Em outro trecho, ao se lembrar de uma conversa com o pai, destaque para a importância que Beta ganha na história: “Tu pode deixar pra trás um filho, um irmão, um pai, com certeza uma mulher, há circunstâncias em que tudo isso é justificável, mas não tem o direito de deixar pra trás um cachorro depois de cuidar dele por um certo tempo (…). Os cachorros abdicam pra sempre de parte do instinto pra viver com as pessoas e nunca mais podem recuperá‑lo por completo. Um cachorro fiel é um animal aleijado. É um pacto que não pode ser desfeito por nós. O cachorro pode desfazê‑lo, embora seja raro. Mas o homem não tem esse direito”.
É cuidando de Beta que o professor gaúcho aluga um apartamento de frente para o mar, arruma um emprego numa academia e pode ser visto, diariamente, nadando pelas águas do balneário catarinense. Quando ele começa a perguntar sobre seu avô, que viveu ali décadas antes, é recebido com frieza. Muitos se lembram do que aconteceu e querem enterrar o assunto; outros acham que o neto é assustadoramente parecido com o avô. E há aqueles que tomam um pelo outro, aumentando o ambiente de hostilidade e, por que não, medo.
Na busca final para entender o paradeiro do avô, ele coloca um mochilão nas costas e, seguido pela cadela, percorre durante dias essa região de Santa Catarina. No fundo, Daniel Galera queria narrar a transformação de uma vida prosaica em mito, como ele mesmo declarou em algumas entrevistas. Conseguiu.
Obra de um autor que apareceu escrevendo para e na internet, em fóruns e blogs do final dos anos 90, Barba Ensopada de Sangue é um dos melhores livros da literatura brasileira contemporânea. E uma boa forma de viajar pelo sul do país. Das muitas frases da obra que achei marcantes, uma, já quase no final, serve bem para encerrar este texto: “Ninguém escolhe nada e mesmo assim a responsabilidade é nossa. É assim. Não sei explicar por quê”
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Por: 360meridianos
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