Não que eu tenha narcolepsia, mas sinto que um de meus neurônios tem vocação para zelador de prédio. Não importa onde eu esteja ou o que ainda tenha que fazer, se os relógios marcam certa hora da noite, ele vai até a chave geral e começa a desligar tudo. Sem piedade e, ironicamente, sem procrastinação, uma das características máximas do sistema que ele adora colocar para dormir.
Estou acordado e ligado na conversa, mas ele desliga a primeira chave. Dou um bocejo, ele desliga a chave seguinte. Os olhos ficam vermelhos, ele passa para a próxima – as pálpebras já não se aguentam, ele segue seu trabalho metódico e eu começo a falar coisas sem sentido, entrando em sono profundo antes mesmo de me dar conta que vou dormir.
O dia de trabalho do neurônio, digo, do zelador, termina com um corpo estirado em algum lugar e dormindo profundamente. O problema é que eu posso apagar na cama, no sofá da sala ou durante uma polêmica animada na mesa de um bar. Se eu dormir durante uma conversa com você, saiba que não é desprezo ou falta de atenção. Foi só um funcionário desligando a chave geral.
Nem sempre foi assim, é verdade. Acho que esse neurônio começou a apagar tudo por sobrevivência, durante os dois anos em que eu trabalhei de madrugada. Eu pegava serviço às 4h da manhã, numa empresa de comunicação, onde coordenava a exibição do primeiro telejornal do dia. Acordar às 3h da madrugada, quando alguns bares ainda estavam fechando, não era fácil. Mas o difícil mesmo era deixar o serviço sem vontade de fazer do primeiro barranco que aparecesse em travesseiro.
Nessa época eu não trabalhava aos sábados, pelo menos não nesse horário ingrato. Para conseguir ter uma vida social, digamos, dentro do padrão, eu deixava a empresa (de ônibus, porque dirigir era impossível), chegava em casa e pulava na cama, já com o sistema prestes a entrar em colapso. Dormia enquanto as pessoas almoçavam. Dormia enquanto o mundo seguia em frente. Dormia apesar das insistentes ligações de atendentes de telemarketing – pensando bem, acho que foi nessa época que eu passei a odiar telefones fora de hora. Onde já se viu ligar para alguém às 14h, quando eu esteva no mais profundo sono R.E.M?
A apagão vespertino não adiantava muita coisa, já que continuei apagando nos bares do mesmo jeito, toda sexta-feira, mais ou menos quando os amigos pediam a quarta cerveja. E que amigos, né? Tenho uma infinidade de fotos dormindo nos mais diferentes ambientes – da mesa do bar ao chão de casa, do sofá da festa de formatura ao banco do carro. Tudo que você dormir pode (e será) usado contra você.
Eu deixei o trabalho da madrugada logo depois da Copa de 2010, mas o sono não me abandonou completamente. É como se meu corpo ainda quisesse dormir todas as horas que a vida profissional me roubou. E algo me diz que falta muito. Não apago mais na quarta cerveja, é verdade, mas, o zelador garante, com a sabedoria de um Ted Mosby, que nada de bom acontece depois das 2 da manhã. Então o melhor é apagar antes.
Por outro lado, a tendência de abraçar o sono como se o amanhã já estivesse batendo à porta tem suas vantagens. Ao viajar, por exemplo. Não tem avião, ônibus, carro, barco ou tuk-tuk em que eu não consiga dormir. Esta semana fiz a viagem entre Belo Horizonte e São Paulo de ônibus. Entrei no busão às 21h45, em BH, e passei os primeiros 15 minutos pensando na vida. O veículo nem tinha deixado a região metropolitana e eu já estava apagado na poltrona, cabeça escorada no vidro e babando levemente. Espero não ter roncado, mas não garanto.
Não acordei nem nas paradas, quando as luzes são acesas. Não acordei nem na hora em que vários passageiros costumam se levantar para ir ao banheiro. Nem quando um ladrão entrou no veículo, abriu mochilas e levou os notebooks de dois viajantes. Quando, enfim, acordei, o sol brilhava forte, o ônibus estava parado num posto da Polícia Rodoviária Federal e policiais revistavam as bagagens de todos os passageiros, para garantir que os notebooks furtados não estavam lá.
Assim que me dei conta da situação, abri (em pânico) minha mala, para verificar se meu computador não tinha ido embora também. Estava lá – eu apaguei, mas o zelador sempre deixa o modo de segurança ligado. Dormi com a mala presa aos pés.
Em viagens mais longas de avião, por outro lado, tento lutar contra o apagão imediato. Espero pelo serviço de bordo, tomo uma cerveja e assisto alguma série ou filme que eu não veria em outro lugar. Afinal a passagem custou caro e o zelador pode ser metódico, mas também é pão duro.
Quando não dá mais para aproveitar o voo, durmo profundamente, sem grande dificuldades. E gostaria até de apagar antes da decolagem naqueles voos que merecem ser esquecidos, tipo cruzar um oceano sem entretenimento de bordo, sem espaço para as pernas e com comida ruim. Desculpe-me se dormi no seu ombro. Era questão de sobrevivência, mas espero não ter roncado.
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Por: 360meridianos
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