“Não cabe no nosso orçamento”. Me acostumei a ouvir essa frase e suas variantes desde que larguei minha carteira assinada, abri uma empresa e comecei a viver de blog. Quando envolve trabalho criativo, é comum que empresas peçam por trabalho de graça. Ou quase de graça.
Aconteceu na semana passada. Várias vezes. Só não cravo um número de propostas bizarras recebidas a cada semana porque nos acostumamos a ignorar os pedidos mais absurdos. É empresa querendo divulgação da marca no 360, mas só paga um cafezinho. É agência querendo fazer propaganda do cliente no blog, mas não tem dinheiro, o pagamento é uma necessaire. Que só será enviada depois que 70 leitores comprarem o produto dele, claro, afinal a, errh, parceria precisa ser justa para as duas partes.
É empresa pedindo para usar nossos textos de graça em outros sites. O pagamento? Visibilidade – nem preciso dizer que os sites dessas empresas raramente têm um número de leitores relevante. Já aconteceu de uma empresa famosa, do ramo do vestuário e com faturamento na casa dos 500 milhões de reais, usar uma foto tirada pela equipe do 360 em seu site. Sem pedir ou avisar. Ao descobrir isso, entrei em contato e informei nossa tabela de preços, exigindo pagamento pelo serviço que não tinha sido solicitado, mas que eles tinham usado mesmo assim. “Não cabe no nosso orçamento e, além disso, estamos dando visibilidade para seu trabalho”. Contra argumentei na mesma moeda: e se eu entrar numa loja de vocês, pegar uma camiseta sem pedir e, na hora que vocês reclamarem, eu disser que não tenho dinheiro e que estou dando visibilidade para o seu trabalho? Vai estar tudo bem? Nunca me responderam.
Se você tem um trabalho criativo, seja como blogueiro, fotógrafo, escritor, ilustrador, editor de vídeos ou qualquer outra função semelhante, é provável que já tenha lidado com propostas assim. E eis um segredo da frase favorita desse nicho: não é que o orçamento seja insuficiente para pagar um valor justo pelo trabalho, veja bem. Há dinheiro. Quem não cabe no orçamento é você. Sou eu.
Criou-se a ideia de que produtores de conteúdo devem trabalhar de graça. E os argumentos a favor dessa tese são vários, mas o primeiro é quase sempre a tal da visibilidade. É preciso criar portfólio, fazer seu nome. Para, quem sabe um dia, ter o direito divino de ser pago em dinheiro pelo seu trabalho. Até lá, pratique a fotossíntese para viver e pague contas com necessaires. E fique feliz que procuraram você, não uma das milhões de opções disponíveis no mercado. Só não digo que disponíveis a preço de banana porque até a banana tem um preço.
Não vou julgar quem está no começo de carreira e acredita nessa ladainha. Eu já fui essa pessoa. Já escrevi para sites de grandes empresas de comunicação, na época em que tentávamos transformar o blog num negócio, em troca da tal da visibilidade. Spoiler? Nunca valeu a pena. Os nossos textos começaram a ser lidos quando passamos a concentrar esforços na nossa plataforma. Aos poucos, sem nada de milagroso, os leitores chegaram e aprenderam que o 360 é o lugar para ler o que escrevemos.
Hoje, cinco anos depois da fundação do blog, até escrevo ocasionalmente para outros veículos. Mas, das duas uma: ou eu sou pago em dinheiro ou escrevo de graça sim, mas por prazer, por acreditar numa causa ou projeto ou até mesmo por querer ajudar. Não há problema no trabalho gratuito, veja bem, desde que ele não seja uma forma de explorar uma das partes. Desde que não seja apenas mais uma maneira da empresa que recebe o trabalho ganhar dinheiro, mas não repassar para os colaboradores.
Outra questão importante envolve o chamado trabalho especulativo. Imagine que você precise contratar um ilustrador. Ao invés de estudar o portfólio e conversar com o profissional, você pede que ele (e outros profissionais) mandem opções do serviço que você quer. É sua forma de avaliar o melhor. Assim que elas chegam, você escolhe um, paga pelo uso do serviço, mas ignora o trabalho feito por todos os outros envolvidos.
Até o Steve Jobes tentou fazer isso. Após sair da Apple e iniciar uma nova empresa, ele procurou o designer Paul Rand para fazer a logo do novo projeto. “Tem como você me mandar opções antes, para eu avaliar seu trabalho?”, pediu o Jobes, antes de fechar o negócio. “Não”, respondeu o designer. “Eu resolverei o seu problema, você me pagará, mas não precisa usar a solução. Se quiser mais opções, converse com outras pessoas. Eu resolverei seu problema da melhor maneira que sei fazer e você pode usar ou não. É uma escolha sua, que é o cliente, mas de todo o jeito você me paga”.
O próprio Steve Jobes contou essa história, elogiando a postura do designer, que acabou sendo contratado para o serviço. Mas nem sempre é isso acontece – não faltam empresas que aderem ao trabalho especulativo. Sobram profissionais que topam fazer o serviço, mesmo que na prática isso possa significar trabalhar de graça. E isso não é bom nem para quem contratou. Ao promover essa espécie de leilão de serviços sem garantia de pagamento, é óbvio que qualidade não é a consequência direta. Na era do Ctrl C + Ctrl V, imagine o dano que isso faz ao resultado final – e como o trabalho escolhido e de fato comprado pela empresa pode, no final das contas, não ser original ou até mesmo ser um plágio.
Há quem questione também o tempo envolvido na produção de um trabalho criativo. Eu escrevo certos textos em duas horas. Para tirar uma foto é apenas um clique. Há ilustradores e designers que entregam serviços simples (e muito bem feitos) em pouquíssimo tempo, mas isso não deveria tornar o trabalho gratuito ou quase de graça. A questão é que analisar somente o tempo exigido para calcular o valor de um trabalho acaba ignorando o percurso até ali. Por exemplo, os anos de estudo, a criação de um nome no mercado, o aperfeiçoamento da técnica, a compra de equipamento e as dezenas de custos fixos de um serviço, que permanecem os mesmos, não importando se você gastou cinco minutos ou um dia inteiro naquela tarefa.
Outro argumento batido envolve quase uma promessa de fé. “Não cabe no nosso orçamento agora, mas caberá das próximas vezes. E, olha, nem poderia te contar isso, mas tem projetos gigantescos vindo por aí. Então você faz esse de graça, a gente avalia como é seu serviço e em troca traremos os projetos pagos para você, que vai virar nosso produtor de conteúdo oficial”. Tentador, mas não. O próximo passo seria pedir que você pagasse para ter tamanho privilégio.
Imagine que eu vá a um bar, chame o dono e diga que quero uma cerveja de graça, mas que se ele me der eu tornarei aquele o meu bar favorito. Que irei beber lá toda semana. Que levarei amigos, familiares. “Você lucrará muito, basta deixar que eu não pague a conta hoje!” Pois é, mais ou menos a mesma coisa.
Em 2015, a agência canadense Zulu Alpha Kilo fez um curta sobre essa situação. Uma pessoa entra em estabelecimentos como cafeterias, supermercados e marcenarias, e pede alguma coisa em troca de visibilidade ou de promessas futuras. Ninguém achou a oferta tentadora.
E a questão da permuta, que é usada em vários setores da economia – e até na relação entre empresas gigantescas. E que não é necessariamente ruim. É até interessante a existência de sites que trocam serviços entre pessoas interessadas. Por exemplo, aqueles que ajudam a trocar hospedagem por trabalho ou mesmo o house sitting, em que você se hospeda na casa de alguém, mas paga cuidado da casa ou dos animais domésticos da pessoa enquanto ela também viaja.
Para que uma permuta seja válida, é essencial que os dois lados sintam que estão sendo pagos de forma justa, embora não seja com dinheiro. Os serviços prestados precisam interessar as duas partes ou ter valores semelhantes. Já cansei de recusar empresas que querem anunciar no blog, mas oferecem como pagamento a permuta por um item de valor muito inferior ao que cobraríamos em dinheiro. Ou que até oferecem um item de valor razoável, mas que simplesmente não nos interessa.
Situação, claro, que vale para os dois lados: numa era em que blogs se reproduzem numa rapidez astronômica e que muita gente sonha em trabalhar pela internet enquanto viaja pelo mundo, é comum que empresas recebam incontáveis propostas de permuta e parceria em troca de facilidades para viajar. Da mesma forma que os produtores de conteúdo fazem questão de receber boas propostas, as empresas também não querem doar dinheiro por aí. O desafio é entender o que é, de fato, uma troca vantajosa e o que é abuso disfarçado de parceria.
Nesses cinco anos trabalhando com um blog de viagem, três deles profissionalmente, aprendi algumas coisas. E uma das mais importantes é que ou você valoriza seu trabalho, dá seu preço e decide como você vai trabalhar, ou então o mercado decidirá isso por você. Em outras palavras, você trabalhará de graça. Ou quase de graça, afinal o cafezinho, a necessaire e aquele monte de jabá tem até algum valor. Mas não pagam as contas no fim do mês.
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Por: 360meridianos
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