“Eu creio que as pessoas que virem essas imagens dirão ‘Oh, meu Deus, que horror’, e continuarão seus jantares”. Faz mais de 10 anos que, durante uma aula de Geopolítica no Ensino Médio, eu escutei essa frase pela primeira vez. Foi o que respondeu o personagem Jack, um jornalista africano que cobre o conflito entre Hutus e Tutsis no filme Hotel Ruanda (2004), quando perguntado se a visibilidade do conflito no ocidente poderia levar ajuda internacional ao país. Passei o dia me remoendo com aquela verdade. Ainda hoje, sempre que eu leio notícias sobre guerras e massacres, a frase volta a minha mente como um raio e me destrói um pouco por dentro.
O motivo de tanta angústia é que eu me reconheço nela. Leio, me informo, me sensibilizo ao ponto das lágrimas diversas vezes. Como meu jantar, vou ver alguma coisa no Facebook, mudo o mundo em mesas de bar. Nossas vidas seguem, mas a guerra continua. Mais que isso, nossas vidas seguem arrancando os frutos das guerras, conflitos e massacres ao redor do mundo. Hipocritamente nos beneficiamos deles e ignoramos que somos pecinhas nessa grande engrenagem de exploração que é o mundo.
Enviamos uma mensagem de texto, atualizamos o Instagram, fazemos noite de pizza e videogame com os amigos. Há uma cadeia de exploração nas minas do Congo que mata trabalhadores por soterramento, os força a trabalhar 12 horas por dia por 1 ou 2 dólares e tem 40.000 crianças entre seus empregados. A luta pelo controle dessas minas no leste do país gerou um conflito que dura 20 anos e já matou mais que o holocausto. Mas a tecnologia – dos celulares mais baratos aos top de linha, de computadores a brinquedos e TVs e GPSs – não seria possível e acessível sem os minerais Congo, que produz 50% do cobalto mundial sob essas condições. Nos beneficiamos delas.
Extração de minerais no Congo
Situação parecida ocorre na Indonésia, cuja exploração de estanho mata um mineiro por semana, contamina os lençóis freáticos, alavanca epidemias e arrasa o ecossistema da região e marítimo com condições trabalhistas e ambientais que em muito se parecem às que nos contavam os livros de história no capítulo sobre Revolução Industrial. A Indonésia fornece matéria-prima a preços módicos para que a Apple torne nossos iPhones e Macbooks possíveis. Após rechaçar, em 2013, pedidos da ONG Amigos da Terra para que deixasse de comprar estanho vindo dali, a empresa afirma que está trabalhando para melhorar as condições de trabalho nos fornecedores e conduzir a uma solução coletiva. Na época, o auge das denúncias, a Apple lançou uma campanha publicitária Our Assignature que – intencionalmente ou não – contrastava enormemente com as críticas. “Isso é o que importa, a experiência de um produto, como ele faz alguém se sentir. Irá tornar a vida melhor? Ele merece existir?” (veja aqui). O que importa é a nossa experiência.
Mais uma bomba cai em Aleppo. De tempos em tempos há um inimigo novo. Destituímos parte da população de humanidade para garantir a continuidade do modo de vida de outros, eles dizem. Mas as bombas, cada vez mais mortais, mais precisas, mais devastadoras, não chegam ali assim, do nada, passam por investimentos pesados em pesquisa, em universidades, passam pela vitalidade da indústria armamentista. E não só dela. A guerra faz bem para a economia quando é fora do quintal de casa. A guerra traz avanços quando você está longe do front.
Mas passamos a tarde no shopping. Transitamos entre vitrines e prateleiras sem refletir sobre o impacto daquilo que consumimos ou sobre quem sofre na outra ponta da cadeia de produção. Celebramos as camisetas que compramos em liquidação sem preocupar-nos com as cadeias de trabalho escravo na indústria têxtil. Acompanhamos avidamente os lançamentos de cada nova SmartCoisa. Nos esbaldamos em uma barra de KitKat ignorando escravidão empregada na exploração do cacau e do óleo de palma por marcas como Nestlé e Hershey’s que possibilitam que a gente tenha uma sobremesa todos os dias e um docinho para curar qualquer dor de cotovelo.
Empregado na indústria de cacau em Gana. Matéria-prima é o principal motor da economia e gerador de postos de trabalho do país, mas não faltam denúncias de infrações aos direitos humanos nas fazendas de cacau.
Fazemos tudo isso com a mesma facilidade que colocamos no carrinho a carne do churrasco sem pensar muito nos métodos cruéis de criação e abate dos animais. Não pensamos em nada disso porque somos hermeticamente blindados por um sistema que tem interesse em nos manter assim, mas também porque não queremos ver. Ver dá trabalho, exige mudanças. E assim nos limitamos a uma breve exclamação de horror e a continuar com os nossos jantares. Afinal, ninguém quer abrir mão daquela barra de KitKat.
Fotos: Shutterstock
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