Na latinha de peixe que eu comprara há pouco, a data do lote se destacava: 2014. Apesar de ninguém estranhar abrir um vinho que ficou anos envelhecendo, é provável que muita gente torça o nariz para a ideia de peixes enlatados sem validade para vencer. Mas estamos falando de conservas. Uma indústria que Portugal domina há 150 anos.
Sardinha, atum, carapau, bacalhau, polvo, lula, ovas… Você dá o nome do peixe ou do fruto do mar e é quase certo que encontrará sua versão enlatada com origem portuguesa. A latinha que eu comprei, de 2014, é da Pinhais, uma empresa familiar que desde 1920 produz conservas de forma artesanal. Quando visitei a fábrica em Matosinhos, nos arredores do Porto, Patrícia Sousa, diretora de marketing, me explicou que as tais latas de 2014 eram chamadas “reserva”. E tal como um bom vinho, elas têm um sabor fantástico:
“A sardinha não tem data de validade, tem o que chamamos de sugestão de consumo ‘antes de’. Quanto mais tempo ela tiver em contato com o azeite, melhor é a preservação e o sabor.”
Ovas de Sardinha, o chamado “Caviar Português”. Uma lata da iguaria custa em média 20 euros
A prova disso é a curiosa história sobre as três latas de sardinha em azeite portuguesas encontradas no final dos anos 1950, no bunker do Hitler. Eram da marca Ramirez, a fábrica conserveira mais antiga do país, em funcionamento desde 1853. Ligaram para o senhor Sebastião Ramirez, que na época comandava a empresa, e enviaram o produto. Segundo uma entrevista do filho, que atualmente comanda a Ramirez, a família decidiu provar as latas. E eles aprovaram as sardinhas: “Estavam óptimas”.
A história dos peixes enlatados
A relação entre as guerras e as sardinhas e atuns enlatadas não é incomum. No início do século 19, um francês inventou o princípio da conservação de alimentos com o calor em recipientes fechados – e um inglês desenvolveu a ideia, patenteando um invólucro metálico. Em meados daquele século já tinham surgido em Portugal as primeiras fábricas de conservas de peixes.
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Mas foi no início do século 20, com a explosão da Primeira Guerra Mundial, que a indústria conserveira portuguesa chegou ao seu auge. Alimentavam os soldados dos dois lados dos conflitos que assolaram o mundo na primeira metade do século. Por volta de 1920, havia mais de 400 fábricas no país. “A região de Matosinhos sempre viveu da indústria conserveira. Aqui tínhamos os pescadores, a produção das latas, os soldadores. A indústria sempre foi muito importante, a nível econômico e social”, explica Patrícia. Muitas empresas, como a própria Pinhais, chegaram a ter sua própria frota piscatória.
Lata antiga, e enorme, de sardinha. Considerada a rainha das conservas.
Porém, depois da Segunda Guerra, todo o setor perdeu seus principais mercados de destino e houve uma grande queda das vendas. Além disso, problemas como a escassez de peixes e a entrada de competidores do norte da África no mercado fizeram com que muitas empresas falissem. Hoje, segundo a Associação Nacional dos Industriais de Conservas de Peixe (ANICP), existem apenas 20 fábricas de conserva em Portugal.
Como transformar peixe fresco em conserva
Quando descemos para ver a produção da fábrica, Patrícia cumprimentou as senhoras pelo nome. Todas riam, comentavam da vida, paravam para fazer graça para o bebê que também estava na visita. As mulheres sempre foram as responsáveis por preparar os peixes que chegavam dos pescadores e continuam sendo a principal força produtiva dessa indústria. “Temos colaboradoras que trabalham conosco há 45 anos. Avós, mães e netas”.
São elas as responsáveis por praticamente todo o ciclo de produção artesanal de latas de conserva de sardinha (e outros peixes), que a Pinhais chama de “método tradicional”. Há 99 anos, eles produzem suas conservas mais ou menos da mesma forma.
“São cerca de 100 mulheres que fazem todo o ciclo produtivo. O corte e a evisceração é feito à mão, o que permite ter um maior controle de qualidade sobre o peixe. No enlatamento só trabalhamos com ingredientes frescos e são cortados no próprio dia, nada congelado, com os melhores ingredientes”, conta Patrícia Sousa.
Segundo ela, antigamente havia soldadores que fechavam as latas. Hoje em dia, uma máquina faz o azeitamento e fecha a lata, e outra faz a esterilização das recipientes. São as únicas máquinas em todo o processo.
Outra característica especial do método tradicional é a forma de cozinhar o peixe: “a cozedura é feita em grelhas a vapor, em que o peixe é cozido fora da lata, de forma uniforme. Toda a água e gordura ficam nas grelhas, e não no interior da lata. São os únicos em Portugal a ainda fazer esse método”, explica Sousa. O sabor, garante, é completamente diferente.
Sardinhas depois de serem cozidas no vapor
As latas (que não são de alumínio, mas de folha de flandres) são fechadas, embaladas no papel especial – trabalho que também é feito manualmente pelas mulheres – e ficam pelo menos seis meses armazenadas na fábrica, para que o contato do peixe com o azeite adquira o sabor esperado.
Do mar para a lata… da lata para o mundo
“Começamos a trabalhar às 8h e todo peixe que é comprado é finalizado no mesmo dia: enlatado, esterilizado no próprio dia”. São mais ou menos 20 mil latas produzidas diariamente. Um volume relativamente pequeno, em comparação com outras grandes fábricas cujo processo é menos artesanal.
Sardinhas frescas vindas do mercado de peixes
O peixe, segundo Patrícia, vem direto do Mercado de Matosinhos, um dos mais importantes do país. Além disso, há uma preocupação (e uma limitação) em relação à sustentabilidade da sardinha, que tem sua data de pesca limitada pela União Europeia, de acordo com o ecossistema dos peixes. Grandes produtores, para conseguir manter o volume, precisam misturar peixes frescos congelados.
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90% da produção da Pinhais é para exportação: Áustria, Itália, EUA, Canadá e Antilhas são os principais compradores, mas eles trabalham para cerca de 21 mercados. Em Portugal, mais de 50 toneladas de peixe em conserva são exportados todos os anos.
Embalagem pronta para ser enviada para a Áustria
O mercado interno, que segundo a ANICP representa 35% da produção, tem crescido e se sofisticado graças ao turismo. Desde 2014 surgiram em Portugal latas em conserva com receitas gourmet e decoração colorida. Ganharam espaço e reconhecimento, lojas especializadas, como a Loja das Conservas em Porto e Lisboa, ou restaurantes que servem receitas a partir das latinhas, como o Can the Can ou o Sol e Pesca, em Lisboa. Até os aeroportos do país hoje contam com lojas só com peixes enlatados.
Como visitar uma fábrica conserveira
A Pinhais somente em 2019 abriu seu prédio histórico para visitação – e também tem uma loja, que vende as duas marcas da empresa, Pinhais e Nuri, por a partir de €2,50.
Para fazer as visitas é necessário agendar pelo site com pelo menos 24 horas de antecedência. Há três modalidades de visitas: por 8 euros você faz um tour guiado pela fábrica e vê o processo de produção. Por 11 euros é possível, além do tour, provar duas variedades de conservas. E por 14 euros dá para acrescentar harmonização com vinho.
A loja fica a menos de 5 minutos a pé do metrô Câmara de Matosinhos.
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