“Um restaurador não pinta por cima e sim usa da ciência para reintegrar as cores de uma pintura”, explicou Ana Mota, restauradora do Museu de Lamas, no norte de Portugal. Apaixonada pelo trabalho, ela fez questão de explicar que se considera uma cientista no mundo das artes: uma formação que exige anos de estudos e que inclui conhecimentos de belas artes, história, química e outras competências.
“O restauro nunca acrescenta nada à obra do ponto de vista artístico. O objetivo da restauração não é fazer com que a obra fique nova. A restauração entra para mostrar a obra como foi criada pelo artista, no tempo em que foi feita”.
O trabalho de um restaurador e conservador de obras de arte é anônimo, silencioso e raramente ganha manchetes internacionais. Não é à toa que são os desastres que viram notícia, como o célebre meme de 2012, quando uma senhora de 82 anos resolveu – por conta própria e sem nenhum treinamento – “restaurar” um afresco com a face de Jesus, em Borja, na Espanha. Toda a tinta que ela aplicou por cima da pintura se espalhou, formando uma figura bizarra.
“Antigamente se faziam re-pinturas, hoje em dia não se faz isso”, conta Marta Palmeira, conservadora e restauradora portuguesa, sócia-fundadora da 2021, uma empresa privada que realiza restauros, principalmente de arte moderna e contemporânea. “Quando há lacunas, ou seja, quando falta matéria, nós preenchemos apenas naquelas lacunas e depois reintegramos a cor somente naquele lugar. E também cuidamos para que as cores do que nós fazemos sejam iguais as da pintura original, ou seja, nunca pintar por cima da pintura original, usar sempre materiais reversíveis. Temos que tentar que a nossa intervenção não seja invasiva e não seja definitiva, é isso que nós tentamos fazer.”
O Museu de Lamas é um espaço que conta com 16 salas recheadas de obras de arte sacra dos séculos 16 a 18, coletadas por Henrique Amorim, um empresário que passou a vida colecionando peças. O enorme acervo de Amorim ficou abandonado por quase 30 anos. Em 2004, uma parceria do Museu com o Departamento de Arte e Conservação e Restauro da Universidade Católica Portuguesa permitiu que o espaço fosse reaberto. Hoje, o museu conta com o apoio de uma equipe multidisciplinar com a função de estudar e preservar todas essas peças, e uma restauradora, a Ana Mota, que foi quem nos guiou pela visita que faz parte do serviço educativo do museu.
Mota, além de nos explicar a história das obras e do espaço, também nos deu uma aula de como trabalhava para conservar e preservar todo aquele acervo valioso e em constante risco. Numa coleção como a do Museu de Lamas, em que muitas das obras coletadas pelo empresário não foram catalogadas, é necessário o trabalho de um historiador para observar os formatos, cores e materiais e fazer uma ligação da obra com o tempo. A restauradora, ao intervencionar uma obra, consegue perceber diferenças sobre a forma e os materiais.
O trabalho de Marta Palmeira na 2021 é semelhante. Depois de visitar a sede da empresa, a encontrei novamente no alto de um andaime, reparando, junto com a equipe de outras duas mulheres, um quadro de cerca de 3 metros de altura na Reitoria do Porto. O processo para cuidar da tela de 1917 foi longo: “Temos que fazer uma análise dos danos da obras, uma proposta dos tratamentos que são necessários – na proposta vão não só as horas de trabalho, mas também os materiais que podem ser usados – damos um valor. Vão ser dois ou três meses de trabalho de três pessoas para fazer a limpeza, preenchimento e reintegração, para deixar a obra o mais similar possível de quando foi feita”.
Outra dificuldade é a questão do tempo, uma medida relativa no trabalho da restauração. No caso da 2021, que é uma empresa particular, Marta explica que elas não podem ficar com uma obra muito tempo. “O equilíbrio é difícil. Se formos muito rápidos podemos cometer erros e se demorar muito perdemos dinheiro”.
Por outro lado, Ana Mota, no Museu de Lamas, desde julho trabalha com a mesma escultura, da Santa Maria da Lapa. “É um processo moroso, exaustivo, diferentes técnicas têm que ser aplicadas”. A escultura do século 17 teve áreas pintadas por cima do original e possui um aspecto escurecido graças à degradação do verniz aplicado para protegê-la.
O anjo mais a frente, nos contou Ana, já foi reparado, o outro ainda passa pelo processo. “Por baixo do verniz existem repintes, principalmente na cara dos anjos, significando que alguém pintou por cima dos rostos originais, alterando o aspecto da escultura e omitindo seu real valor artístico”.
Sustentabilidade
“Somos três mulheres e ouvimos desde sempre que o restauro era muito perigoso. Tentamos usar o mínimo de químicos possível, organizamos workshops também numa tentativa de encontrarmos materiais melhores, mais sustentáveis, menos tóxicos para nós e para as obras”, afirmou Marta. Eu perguntei por que o restauro seria perigoso para mulheres e ela explicou que os solventes e químicos usados tradicionalmente nos processos podem gerar problemas para engravidar ou má formação no feto.
Químicos e pigmentos para restauração
A solução, para além de usar máscaras e luvas, é apostar em novas tecnologias. Marta aponta, por exemplo, o uso de gel e nanogel no lugar dos solventes. “Tivemos um workshop em julho em que falamos muito desses géis, que são à base d’água e não têm quase nenhum solvente ou o solvente mais forte que tem é álcool. Ou microemulsões que têm pouco solventes e podem ser usadas a gotas ao invés dos litros que eram usados antigamente”, conta.
Além disso, ela também explica que, para a obra, quanto menos produtos colocarem, melhor: “A limpeza é dos tratamentos mais invasivos que podemos fazer a uma obra, estamos tirando as sujeiras, mas acrescentando materiais que não deveriam estar ali. Tentamos remover ao máximo, tirar o que colocamos, mas se for um material orgânico vai penetrar, se for uma pintura ou papel vai entrar nas fibras”.
Conservação
Essa palavrinha no nome da disciplina é comumente esquecida, mas as duas entrevistadas desta reportagem destacaram a sua importância. “A questão é que muitas vezes nos chamam quando é preciso o restauro, quando há uma emergência, quando há um transporte. O que é uma pena, porque nos preferimos fazer a conservação preventiva – e isso é muito menos invasivo para as obras”, diz Marta.
O fato de Ana Mota trabalhar no museu permite que ela faça rondas periódicas para observar condições ambientais, avaliar se encontra metais oxidados ou possíveis infestações do pior inimigo de um conservador, o cupim. “As colas dessas obras antigas eram feitas de proteína animal, o que atrai mais insetos. Nas inspeções periódicas, se observamos alguma coisa, tentamos agir”.
E o contato humano com as obras de arte, quando não controlado, contribui muito para a sua degradação. “Os nossos dedos têm gorduras, vai oxidar o verniz e alterar os materiais originais”, explica Marta. Além disso, ela aponta que o flash, uma luz hiper forte, gera um processo químico de fotodegradação: um dano cumulativo semelhante a expor um quadro ao sol por muitas horas. Não é à toa que algumas obras de arte ficam expostas poucos meses no ano, para evitar que a luminosidade do próprio museu as destrua.
Métodos curiosos para proteger obras de arte
Existem muita formas, digamos, não usuais para combater pragas que destroem quadros, esculturas e livros antigos. A primeira vez que me deparei com isso foi quando visitei a Biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra, e descobri que toda noite eles soltavam morcegos – criados especificamente para isso – no espaço. A Marta Palmeira explica o motivo em poucas palavras: “Morcegos não comem livros, comem insetos que comem livros”.
Ela também falou da anóxia, método para exterminar insetos, em que se coloca uma peça de arte dentro de um saco plástico, se tira todo ar da embalagem e se deixa com vácuo ou se insere outro tipo de ar, como oxigênio. Os insetos não terão para onde fugir – e nem como respirar! Eu conheci essa e outras técnicas quando visitei os bastidores de um museu no Egito.
A Ana Mota também se lembrou de uma dessas histórias curiosas: no fabuloso Museu Hermitage, em São Petesburgo, há uma verdadeira gangue de gatos, desde o século 18, para combater ratos. Inclusive, há uma diretoria e um fundo para doações para os gatinhos.
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Por: 360meridianos
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