Como é estudar na Arábia Saudita
O Rafael Coelho teve uma experiência de intercâmbio que pouca gente tem no currículo: fez mestrado na Arábia Saudita. A história tão curiosa até virou livro (disponível na Amazon). Ele compartilhou com a gente um pouco mais dessa curiosa aventura e como foi parar lá.
A minha história começa no meio de 2008 quando estava no último ano de Engenharia Eletrônica na UFRJ. No intervalo de uma aula, um amigo me mostrou um folheto de uma palestra que ele tinha acabado de assistir. Era sobre uma bolsa de mestrado em uma universidade que ainda nem existia.
Local: Arábia Saudita
Arábia Saudita?!??!
Assim como a maioria das pessoas, minhas únicas referências da Arábia eram: terrorismo, mulheres de burka e aquele gol da Copa de 94 em que o cara sai driblando todo mundo à la Maradona. Minha primeira reação foi… “Você tá maluco!! O que vou fazer lá?? Deve ter algum esquema, nem existe essa faculdade”.
Mas aquele meu amigo insistiu. Falou que eu devia me inscrever para ver o que ia dar. Me inscrevi e passei por uma entrevista em São Paulo e mais uma na Cidade do México, até finalmente ser selecionado. Nesse evento no México que pude conhecer melhor o projeto.
A Arábia Saudita é um país muito rico, um dos maiores produtores de petróleo do mundo. Mas toda a economia gira em torno disso. Se um dia o petróleo acabar, ferrou! Acabou o país!! Então, o rei da época, Rei Abdullah, teve a ideia de começar a investir em tecnologia para ajudar o desenvolvimento e diminuir essa dependência do petróleo. Daí veio o nome da Universidade, KAUST: King Abdullah University of Science and Technology.
Além disso, ele tentava começar lentamente o processo de abertura do país. Para você ter uma ideia, não existe turismo lá. Conseguir um visto para visitar a Arábia Saudita é praticamente impossível. Como dinheiro nunca foi problema para os árabes (e o barril de petróleo estava a mais 100 USD!), eles estavam investindo uns 20 bilhões de dólares só na construção da faculdade. Isso mesmo, 20 bilhões de dólares! O projeto era ousado. Em 20 anos, eles queriam se tornar uma referência mundial, no nível do MIT, CalTech, Stanford, etc
Para isso, eles estavam construindo do zero uma cidade universitária no meio do deserto, a uma hora da segunda maior cidade da Arábia Saudita, Jeddah. O local escolhido foi um vilarejo de pescadores chamado Thuwal às margens do Mar Vermelho… aquele mesmo que Moisés abriu na novela da Record. Por causa desse isolamento, seria uma minicidade com várias opções de entretenimento: mercados, lojas, cinema (mesmo proibido no país), praia, marina, esportes, restaurantes, campo de golfe… estilo Dubai mesmo.
Já tinham acertado com professores do MIT, Cornell, UC Berkeley…etc. E estavam selecionando alunos de boas universidades ao redor do mundo. Além dos incentivos acadêmicos, a KAUST ofereceu benefícios inacreditáveis como uma bolsa de estudos de 1.700 dólares mensais, casa e plano de saúde. Afinal, não é fácil convencer bons alunos a largarem tudo e partirem para a desconhecida Arábia Saudita, né? Tudo parecia perfeito, o problema continuava sendo a localização da universidade.
Para quem não sabe, a Arábia Saudita é o berço do Islamismo. Lá eles ainda mantêm uma interpretação altamente conservadora das leis islâmicas (sharia). Segura aí umas “Leis” bizarras do país:
1 – Bebida alcóolica e carne de porco não podem entrar no país;
2 – Mulher não pode dirigir;
3 – Cinema é proibido;
4 – Igreja é proibida e distribuir Bíblia dá pena de morte;
5 – Pena de morte é decapitação em praça pública.
Mas para solucionar essa desconfiança, seis meses antes da inauguração da universidade, eles convidaram todos os alunos selecionados para passar uma semana na Arábia Saudita. Éramos em torno de 400 alunos de mais de 60 nacionalidades, dentre eles eu e mais cinco brasileiros. 3 homens e 3 corajosas mulheres.
Esse evento foi fundamental para a minha decisão, pois a conclusão após essa semana lá foi: A Arábia Saudita não é tão ruim quanto parece!!! Vi que nem todo mulçumano é aquele maluco que a gente vê na TV. Eles são o povo mais hospitaleiro que já conheci. O cara mal te conhece, e já te chama para jantar na sua casa. E qualquer problema que você tiver, eles vão fazer de tudo para te ajudar.
Os mais jovens estão com a cabeça muito mais aberta e compartilham dos mesmos interesses que eu. Então, nada de ódio ao ocidente, ódio aos “infiéis”. Eles também não maltratam as mulheres. Os maridos que conheci tratavam bem e com muito respeito suas esposas. Além de não concordar com as leis opressivas as mulheres. O maior problema são as leis atrasadas do país.
A cidade de Jeddah é bem desenvolvida também, com prédios bonitos, excelentes shopping centers e várias opções de restaurantes internacionais. Além disso, ela fica à beira mar e não no deserto, como é a imagem clássica da Arábia. Jeddah também é a “menos pior” em relação a conservadorismo. A polícia religiosa não age muito por lá.
Polícia religiosa??!?
É uma polícia para fazer valer as leis islâmicas. Ela pode, por exemplo, exigir um certificado de casamento de um casal jantando em um restaurante ou “pedir” para uma mulher se cobrir mais. Ela age mais frequentemente na capital, Riad.
E por último e mais importante, vi que dava para me sentir seguro lá. O índice de criminalidade é praticamente zero. Seguro?? E o terrorismo???
Assusta um pouco pensar que a maioria dos terroristas do 11 de Setembro vieram de lá. E que foi justamente ali onde Osama Bin Laden nasceu. Tive até um professor que já havia dado aula para ele em outra faculdade de lá. Mundo pequeno!
No entanto, descobri que o programa antiterrorismo da Arábia Saudita foi muito bem-sucedido. Os atentados lá são cada vez menos frequentes e mortais. Não é um Iraque ou Afeganistão em que toda hora pula notícia de um atentado que matou 100 pessoas. A chance era bem maior de sofrer alguma coisa na Linha Vermelha indo para o UFRJ do que lá!
É claro que por mais que tenha me surpreendido positivamente, a cultura ainda era totalmente diferente da nossa. Mas voltei pro Brasil com a certeza de que valeria a pena a experiência. Decisão tomada!
Passei 6 meses antes de ir respondendo à pergunta: “Arábia Saudita? O que você vai fazer nesse país? E ainda tinha que ficar ouvindo piadinhas da família e dos amigos. A mais comum de todas era mais ou menos assim: “Mestrado na Arábia?! Curso para homem-bomba?”
Apesar disso tudo, em julho de 2009 embarquei para esta aventura. E posso dizer que foi a melhor decisão da minha vida! Passei dois anos inacreditáveis por lá. Para começar, o campus era incrível! Tudo muito grandioso e moderno como você pode ver aqui nesse tour virtual. E as salas de aula e laboratórios eram de primeiro mundo. Nunca tinha visto algo parecido. Os árabes no geral adoram ostentar e exageraram até no “alojamento” dos alunos. Enquanto na maioria das universidades do mundo os alunos têm que dividir um quarto pequeno e dormir em beliche, O rei Abdullah me deu um tríplex de 110 metros quadrados!
O ambiente era bem internacional e a língua oficial era inglês. Árabe mesmo, só aprendi algumas palavras básicas. Com o inglês dava para se virar bem na cidade também. Além disso, algumas regras do país não eram aplicadas lá dentro. Esta notícia era bem importante para as poucas mulheres que foram estudar na KAUST. Nesse microcosmo, elas poderiam dirigir e se vestir normalmente como uma ocidental (mas sem exageros, né?). Mas, em relação a algumas regras, não teria jeito! Ou seja, “NO ALCOHOL”!!!
Outro aspecto interessante de estar por lá foram as viagens que fizemos. A Arábia Saudita está localizada literalmente no centro do mundo. Então, era muito rápido e relativamente barato viajar para qualquer lugar do mundo. Fomos para países exóticos, mas “populares” como: Tailândia, Cingapura, Indonésia, Índia, Emirados Árabes, Turquia e Egito. Mas graças a FlyNas, uma espécie de Ryanair da Arábia, fizemos viagens curtas para países que praticamente ninguém pegaria um avião do Brasil para ir. Lugares como Jordânia, Líbano, Chipre, Bahrain, Qatar e Síria entraram na lista também.
Síria?? E o Estado Islâmico?? Estávamos em 2010. Era a Síria antes do Estado Islâmico. Lá, conhecemos uns primos de um amigo da faculdade. Eles eram de uma família de classe média alta, com carros bons, inglês fluente, moravam bem e frequentavam bons restaurantes. E a imagem que tivemos do país é bem diferente do que você provavelmente tem. Além de um tour pela capital, esses primos nos levaram para conhecer excelentes bares e restaurantes.
Bares na Síria? Nesse aspecto, a Síria era mais aberta que a Arábia. Sim, o álcool era permitido por lá! Fomos até para uma balada em um hotel internacional. Difícil de acreditar, né?! Hoje, quando vejo sobre a Síria na TV, fico imaginando como esse povo está sofrendo com tanta pobreza e violência.
Aleppo antes e depois da guerra
O fato é que todas essas viagens mais que compensam o fato de estar morando em país ultraconservador. Quando começava algum tédio da rotina de lá sempre vinha uma viagem fantástica para dar uma relaxada. Além disso, contribuiu bem para meu sonho de conhecer 100 países (Estou em 68 ainda).
Me formei em dezembro de 2010 em uma cerimônia muito grandiosa, afinal estavam se formando os primeiros alunos da história de KAUST. Tive uma proposta de continuar pela Arábia trabalhando. Mas, decidi voltar para a minha cidade natal, o Rio de Janeiro. Posso dizer que o saldo foi extremamente positivo dessa experiência! Foi uma decisão difícil, “sair da caixa”, largar meu emprego na época, para embarcar em uma aventura na Arábia Saudita. Ganhei o título de mestre em Engenharia Elétrica e um diploma maneiríssimo.
No entanto, o que valeu a pena mesmo foi a experiência multicultural de estudar e conhecer gente do mundo todo! Por exemplo, fiz um trabalho em grupo de estatística com um mexicano, um iemenita (Iêmen é um país ali do lado), um sudanês, um filipino, uma americana, um irlandês e uma chinesa. Essa bagagem cultural não tem preço!
E com muito orgulho, posso dizer que fiz parte da história de uma universidade da dimensão do que a KAUST representa e ainda vai representar. Deve ser incrível estudar em uma Harvard da vida. Mas você só será mais um no meio dos milhares que já passaram por lá ao longo dos últimos 400 anos.
Na KAUST meu nome vai ficar escrito para sempre na parede na universidade com membro da “Founding Class”.
*Crédito Imagem Destacada: Shutterstock
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