Entretido com o fluxo sem fim de mensagens do Whatsapp e atualizações no Instagram, eu respondia de forma automática a cada frase dita pelo motorista que me levava do aeroporto para casa. Até que um terremoto, o do Haiti, em 2010, me fez largar o celular e prestar atenção no que dizia meu interlocutor.
O Diego, que ganha a vida com o uber nas horas vagas da faculdade de engenharia, já rodou o mundo trabalhando com máquinas pesadas. “Não tem pedaço do Brasil em que eu não tenha morado por uns meses”, disse. Não tive motivos para duvidar, afinal o sotaque – um misto de várias regiões – era prova disso.
Também foi o trabalho que o levou para o Haiti, onde ele ficou por seis meses. Até que o terremoto de sete graus na escala Richter atingiu o país mais pobre das Américas, deixando mais de 200 mil mortos, outros 350 mil feridos e pelo menos um milhão de desabrigados, numa das maiores crises humanitárias do século.
Tropas da ONU no Haiti (Foto: Gustavo Azeredo)
Em meio ao caos geral, ele foi enviado de volta para o Brasil num avião cargueiro, mas passou por mais um susto: “a pior turbulência da minha vida”, disse ele. “Eu pensava: não acredito que Deus me tirou do terremoto para me fazer morrer num acidente de avião. Arranquei toda a borracha do braço da poltrona com a unha”. Felizmente tudo deu certo, apesar da arremetida do voo, último capítulo da tensa volta para casa.
Enquanto sonha em se formar e rodar o mundo novamente, ele acumula experiência como motorista numa das cidades mais caóticas do planeta. E, como você já percebeu, está cheio de histórias para contar – sejam boas, trágicas, assustadoras ou de dia a dia e sem nada de muito especial, como a da passageira que passou mal com o cheiro do Tietê num dia quente. “Parei o carro. Até eu tive ânsia de vômito”, disse.
Deixei o veículo com uma lição de vida. Não apenas sobre o Haiti, terremotos e a fragilidade de nossa própria existência, mas em como é importante prestar atenção nas pessoas que estão ao nosso redor. Num mundo conectado ao extremo, integrado ao máximo, estamos cada vez mais próximos de quem está longe e distantes de quem perto.
Não foi a primeira vez que uma conversa desse tipo tomou rumo inesperado. De indicações de livros, opiniões embasadíssimas sobre séries e pontos de vista variados sobre questões políticas, já ouvi de tudo no banco do carona. E, eu sei, a nossa tendência inicial é torcer o nariz para a opinião política dos outros. Mas não será isso mais um sintoma da intolerância da nossa sociedade dividida em bolhas?
Já teve, claro, quem passasse do limite, entrando no oversharing. A pior situação foi com um motorista que, no meio de um engarrafamento, começou a trocar áudios com a namorada. Acusações de traição, juras de ódio eterno e o relacionamento acabou comigo de testemunha – só faltou me pedirem para assinar e registrar em cartório.
Mas o momento mais memorável enquanto dividia uma viagem com desconhecidos foi outro. Eu estava no 2004, linha de ônibus que fazia um dos trajetos mais longos de Belo Horizonte e que hoje mudou de número (agora se chama 5106). Como eu fazia sempre naquela época, eu peguei o ônibus no ponto final, no Itamaraty, e iria praticamente até o outra ponta do percurso, já no Olhos d’Água.
Um senhor, com chapéu estiloso e doido para conversar, se sentou no banco ao lado e, a cada curva, tentava puxar conversa comigo, com outra passageira e com o trocador. Como ninguém rendeu o assunto, ele resolveu cantar clássicos sertanejos. Cantou enquanto percorremos boa parte da orla da Lagoa da Pampulha; cantou enquanto passávamos na frente do Mineirão e entrávamos na Avenida Antônio Carlos; continuou cantando mesmo quando o ônibus se encheu de alunos no ponto da UFMG, onde as últimas aulas da semana tinham terminado há pouco.
E aí uma coisa mágica aconteceu. No começo foi uma voz tímida aqui, um batuque na lateral do ônibus ali e um ou outro seguindo a música com um movimento de ombros. Mas, quando passamos pelo Complexo da Lagoinha e o ônibus entrou no centro de BH, dezenas de pessoas cantavam, incluindo motorista e trocador. O homem desceu no primeiro ponto do centro – foi aplaudido de pé, agradeceu a todos e recusou os pedidos eufóricos por mais uma.
Gente. Essa ainda é a melhor coisa do mundo. Seja para contar uma história marcante e triste, cantar no busão ou compartilhar (exageradamente) uma pequena tragédia do dia a dia.
*Imagem destacada: Shutterstock
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Por: 360meridianos
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