Como a série está silenciosamente mudando paradigmas dos dramas da TV a cabo americana.
Estou eu tranquilamente fazendo minha maratona de The Sopranos. Tony se dirige até o famoso Bada Bing!, onde seus comparsas estão reunidos, e dirige o eletrizante e violento mundo da máfia. Tiros, porrada, polícia, esquemas secretos, traição e mentiras foram as forças motrizes que levaram a HBO à fama e à tradição que ela possui hoje. O que muitos se esquecem, e que eu também me esqueci ao assistir a série, é que no meio de tudo isso existe uma família Soprano. Carmela, Meadow e Anthony fizeram do clássico show uma montanha-russa de frustração para uma grande parcela da audiência que estava faminta por mais plots mafiosas e menções a Godfather e Goodfellas.
É então que entre as manobras de poder praticadas pelos aliados e inimigos de Tony eu era forçado a acompanhar as experiências pouco aproveitáveis de Anthony Jr., o ser mais egoísta e insuportável que já conheci no mundo das séries, e supostamente me interessar pela vida amorosa de Meadow e seus namorados quase sempre esquisitos. O embasamento e a teoria estava lá: vamos mostrar como é a vida de uma família mimada e protegida por uma redoma de riqueza alicerçada no crime organizado. Na prática, era chato.
Pretendo aqui me focar nas crianças, mas outro texto poderia facilmente ser escrito sobre as esposas e namoradas de nossos protagonistas favoritos. Afinal, como encaixar esses atores mirins, ainda em treinamento, sem recursos dramatúrgicos e em plena puberdade nas tramas principais de cada temporada? Como criar plots genuinamente interessantes sobre os baixinhos sendo que provavelmente coisas muito mais importantes ocorrem nas vidas de Tony Soprano, Walter White, Don Draper e Alicia Florrick?
Algumas outras séries que se encaixam na pecha de “série de prestígio da tv a cabo” já lidaram com isso de outras maneiras, mas tais soluções não parecem ser de muita ajuda. Deadwood simplesmente eliminou o elenco infantil, restando um ou dois personagens que basicamente serviam de alívio cômico e fofura ocasional. The Wire… Bem, The Wire construiu uma temporada inteira sobre as crianças que é provavelmente uma das melhores já criadas na história da televisão, mas as circunstâncias dela são tão especiais e irreplicáveis que é impossível usar esse exemplo como ponto de comparação. Game of Thrones envelheceu todo mundo (e na verdade vou evitar mencionar a série novamente por ser uma adaptação de uma saga incomumente movida por crianças).
O problema realmente existe. Todos nós já ficamos frustrados ao assistir uma trama desinteressante e pouquíssimo importante para o arco da temporada de nossa série favorita que envolve crianças/adolescentes. Eles não atuam bem (os bons vão para o cinema, imagine gastar 5 anos da sua vida útil como profissional, já no começo, ancorado em uma só produção?), os roteiristas não sabem direito o que fazer com eles, e ao mesmo tempo eles não podem ser eliminados. Pessoas tem filhos afinal. Isso é natural. O que então essas produções fazem na maior parte do tempo?
Simples, escondem os baixinhos ou fazem com que eles sejam muito pequenos. Viram papel de parede. Às vezes criam alguma plot para elas, cujo risco de não funcionar é muito mais alto do que em qualquer outro ambiente da série.
Mas nunca, nunca os colocam na trama principal. Bem, até agora.
The Americans começou de forma bem “normal” nesse sentido. Paige e Henry eram os costumeiros papéis de parede da família Jennings, recebendo na primeira temporada alguns esparsos momento de atenção. Nesse momento já se estabelecia que Paige seria a mais privilegiada. O momento mais chamativo foi aquela bizarra plot na qual eles pegam carona para casa (enquanto seus pais são capturados de propósito pelos próprios empregadores) e acabam nas mãos de um cara estranho e desconfortavelmente ciente da beleza precoce da garota.
É bem no final da temporada que temos a primeira pista do que estaria por vir. Paige acorda no meio da noite e flagra sua mãe no porão, supostamente lavando roupa. Ela fica desconfiada. Quando os pais não estão em casa ela desce para investigar. Nasce a semente da dúvida.
Não há nada de espetacular até aí. The Sopranos, em seus melhores momentos com as tramas infantis, trabalhava com essa consciência coletiva familiar de que todo mundo ali era sustentado pelo crime organizado. As crianças sempre são afetadas pelo que acontece com nossos protagonistas. Pois bem, prossigamos.
Na segunda temporada (onde a série alcançou níveis de qualidade alarmantemente altos) já temos de cara uma mudança abrupta. O assassinato da família de um dos parceiros de serviço de Elizabeth e Phillip coloca o casal em estado de alerta. Será que isso também pode ocorrer com nossos filhos? Estarão eles livres de tudo já que roteiristas desse tipo de série geralmente deixam as crianças de lado?
Ao mesmo tempo Paige começa a receber muito mais atenção com sua trama religiosa, enquanto que Henry praticamente desaparece(*). Essa plot tinha todo o potencial de ser o peso morto de uma temporada espetacular, mas os criadores espertamente a usaram para lidar com os dilemas religiosos de pais comunistas perante uma filha subitamente fiel. Além disso, havia algo em movimento ali. The Americans é uma das séries com o desenvolvimento mais lento que já assisti, e ela normalmente expõe suas engrenagens ao expectador. Estamos acostumados com cenas e tramas preparatórias, de forma que há aquele instinto sutil nos dizendo que algo irá acontecer. Nada acontece por acaso em The Americans, então por que diabos estamos acompanhando a vida espiritual de Paige?
(*) É curioso como a série às vezes usa desses desaparecimentos de forma cômica, principalmente com o filho de Stan. Constantemente os pais perguntam entre si sobre o paradeiro dos filhos, como se eles mesmos estivessem cientes do sumiço dos mesmos na trama.
Bem, o motivo é revelado na season finale, e se você leu esse texto até agora sem ter terminado de assistir a segunda temporada PARE IMEDIATAMENTE. Sério. Não arruine um dos melhores cliffhangers da televisão atual.
É revelado, enfim, que o arco principal da segunda temporada, que começou com o assassinato de outra família de espiões russos, foi todo alicerçado sobre um projeto ambicioso dos russos para criar espiões de “segunda geração” em solo americano. Filhos de espiões, nascidos nos EUA, cujo único fato de terem realmente nascido e crescido no país abria portas que nunca estariam disponíveis para Elizabeth e Phillip, seriam recrutados. Isso aconteceu com a família assassinada no começo da temporada e deu terrivelmente errado. O que fazer agora? Tentar novamente. Com Paige.
WHAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAT/????/1/!?!?!?!
Essa foi basicamente a minha reação. Percebam que a “grande revelação” não foi grande coisa, meramente uma conversa discreta e extremamente fria entre Claudia e os pais de Paige. Não houveram gritos, tiros, choro nem vela. Apenas uma simples revelação que chutou para o alto tudo o que a televisão americana já havia produzido no passado em termos de tramas infantis. Foi como se abrissem um universo novo e inexplorado dentro dos dramas de prestígio na tv a cabo que sequer sabíamos que poderia existir. Então vem a terceira temporada.
Nela Paige eventualmente descobriu que seus pais eram espiões naquele que foi o melhor episódio do ano até agora, e tudo ocorreu de forma ainda mais maravilhosa do que eu poderia ter imaginado (e imaginei muitas coisas depois daquele season finale abridor de mentes). Durante toda a temporada a personagem interpretada com incomum talento por Holly Taylor manteve-se nos holofotes e entrou de cabeça no mundo até então completamente inacessível de seus pais. Ela se tornou uma protagonista, e nos últimos episódios sua trama era a mais interessante. Subitamente todos esperavam pela aparição de uma adolescente teoricamente irrelevante numa série de espionagem e Guerra Fria. Não consigo enxergar precedentes para isso na história dos seriados.
Os mundos que não se cruzam em outras séries aqui entram em colisão, e as possibilidades são infinitas em território tão inexplorado. Como ela irá reagir? O que irá acontecer? Enquanto em outras séries tais descobertas são delírios impossíveis de se concretizarem antes dos episódios finais (imaginem só os filhos de Rita descobrindo que Dexter é um serial killer, ou Meadow sabendo que todos os amigos da família que sumiram durante os anos foram mortos a mando do próprio pai), The Americans estuda a fundo tal evento. A história de Paige é a história da transição da infância para a idade adulta. É a descoberta que todos nós fazemos eventualmente de que nossos pais não são perfeitos como sempre imaginávamos.
Essa exploração da trama sob o ponto de vista dos personagens jovens é maravilhosa pois abre um novo caminho e cria novas discussões em um cenário televisivo que já começa a sentir sinais de desgaste enquanto seus principais carros-chefe se aposentam. Nesse sentido, nada mais certeiro do que a cena em que Stan vem compartilhar um jantar com os Jennings após Paige descobrir que os pais são espiões. Esse é um evento costumeiro na rotina da família, mas revestido inteiramente de um novo significado tendo em vista o que a personagem sabe. Stan não é do FBI? Será então que meus pais estiveram fingindo ser amigos dele esse tempo todo? Os olhares, o afiar de faca, tudo muda com essa revelação tão aterradora.
Tudo é posto em cheque. Será que Henry é seu irmão? Phillip e Elizabeth são realmente seus pais? Paige questiona tudo, e o simples fato de questionar a amadurece. Ela não está mais alegremente alheia ao que acontece ao seu redor como seu irmão mais novo. O peso das mentiras e da realidade absurda de que seus pais são russos a esmaga completamente.
Estamos diante de uma revolução dramatúrgica. Se alguém seguirá nos caminhos que The Americans está criando agora é algo a se observar, mas a mera possibilidade já é excitante. Afinal, por que não falar sobre as crianças? Por que mantê-las alheias aos segredos de nossos protagonistas? Por que não colocá-las no centro da trama?
Bullet Points
- Obviamente, eu não assisto tudo. Devem haver séries por aí que possuam uma estrutura similar à que descrevi com presença de atores infantis. Sintam-se livres para discorrer sobre o modo como tais obras tratam seus pupilos.
- Pesquisem “Paige Jennings” no Google Imagens e tenham uma enorme surpresa.