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[Flashback] The Wire 3×11: Middle Ground


Chegamos enfim ao topo do que o entretenimento pode oferecer. Curvem-se perante o episódio mais chocante e irretocável de The Wire.


Middle Ground é o meu episódio favorito de The Wire, o que significa dizer que é meu episódio favorito de tudo o que já assisti nesse mundo. Para escrever essa review eu reassistí-lo pela primeira vez depois de muito tempo. Estava receoso sobre o que iria encontrar, considerando que o havia visto apenas uma vez. Será que a magia acabaria?


Não, não acabou. Terminei Middle Ground com a gloriosa e talvez um pouco depressiva certeza de que não assistiria algo melhor que aqueles 58 minutos durante o resto da minha vida. Analisando cena a cena não consigo capturar uma única falha ou um ponto que eu não tenha gostado. Várias cenas são icônicas, inesquecíveis e devastadoras. O final é o mais impactante de todos, traçando até mesmo um paralelo com Game of Thrones no final de sua primeira e terceira temporadas, coincidentemente uma série que absorveu muito do que The Wire tem a ensinar.


É necessário entretanto explicar porque esse episódio se destaca entre tantos outros, principalmente considerando que a série não dá uma prioridade específica para a criação de episódios bons, mas prefere olhar para o todo. Sim, é nesse episódio que Stringer Bell morre, mas não é apenas sua execução que deixa profundas marcas em qualquer fã da série: a construção desse momento no decorrer de Middle Ground é certeira e emocionante.


A amizade entre Stringer e Avon é algo que foi construído durante todo o decorrer da série, e esses 58 minutos são dedicados em parte a derrubar tijolo por tijolo essa firme estrutura. Wood Harris e Idris Elba entregam atuações perfeitas, e quando estão contracenando não existem outros atores nesse mundo que possam desafiá-los. As divergências que os separaram durante toda a temporada e que tiveram início com a prisão de Avon lá no décimo terceiro episódio da série se tornam insuportáveis. A desconfiança cresce e até mesmo o momento em que eles compartilham memórias da infância no topo do império que construíram (minha cena favorita EVER) é envenenado pelo desconforto.


Primeiro eles sonham com seus dias passados, os sonhos de juventude e as brincadeiras pueris. Avon por um momento se esquece de onde está e entra de cabeça nesse sentimento, projetando para o futuro algumas das conquistas que eles queriam quando jovens. É Stringer quem o lembra: eles já fizeram isso. Eles têm posses, reputação e dinheiro. Avon concorda, mas por um milésimo de segundo é possível detectar em sua face um certo descontentamento, como se ter tudo não fosse o verdadeiro prêmio, e sim sonhar com o que ainda está para se alcançar. Os dois amigos cresceram sonhando com grandezas e as alcançaram, apenas para sonhar ainda mais. O próprio Stringer almeja transcender o jogo do tráfico para o negócio imobiliário. É a insaciabilidade do ser humano que sempre o move. Sem isso ficaríamos estagnados no tempo, eternamente confortáveis com o que temos.


Depois de algumas risadas e uma conversa no geral muito boa, parece que uma escuridão subitamente envolve o ambiente quando Avon pergunta sobre o que Stringer fará no dia seguinte. Eles abandonam o bate-papo nostálgico e voltam a falar de negócios. A alteração faz sentido, pois esse é o ponto onde os dois divergem. Avon começa a balbuciar frases inúteis, cada vez mais desconfortável. Óbvio: ele sabe que ordenou a morte de seu melhor amigo. Stringer também carrega esse desconforto, já que acabou de entregar o colega para a polícia. Entretanto, eles não sabem o que o outro fez.


Avon diz que “são apenas negócios”. Olhem só que coincidência, é a mesma frase que Stringer usou a pouco quando Bunny lhe perguntou o porquê de entregar seu parceiro para a polícia. A frase soa inútil. Na teoria faz sentido, mas vemos nos olhos de cada um deles, e é aí que reside a genialidade de ambas as atuações, a dúvida, o ressentimento, o rancor e a mágoa por uma amizade quebrada. Avon não perdoou o amigo por ter ordenado a morte de D’Angelo. Stringer não perdoou Avon por ter trabalhado com afinco para destruir seu sonho de negócio. Toda a desconfiança que habitualmente corre pelo mundo do crime finalmente os atinge, e o negócio é apenas uma parte disso. Sequer parece que estamos na realidade falando dos grandes “vilões” de The Wire. A série faz esse termo parecer ridículo (e depois de assistí-la, não sei se por coincidência, eu abandonei qualquer interesse que tinha por histórias de super herói): estamos aqui refletindo sobre os sentimentos mais internos e profundos dos nossos antagonistas principais.


Essa cena arrancou algumas lágrimas de olhos que não estão acostumados a chorar assistindo qualquer coisa, e testemunha a favor de Middle Ground que em outros dois momentos também me emocionei. Prefiro falar sobre eles no restante dessa review, pois teria que escrever uma tese de mestrado para abordar todos os temas ilustrados por esse episódio. É possível que alguém já tenha feito isso nos EUA. Bem lembrado, talvez eu procure algo a respeito.


O primeiro ocorre quando Bunny leva Carcetti em um “tour” por West Side, Hamsterdam e suas adjacências. Carcetti está genuinamente curioso a respeito do experimento (assim como o prefeito, num dos únicos momentos da série em que podemos simpatizar com ele), e Bunny mostra-lhe tudo. O bom e o ruim. É numa reunião entre a polícia e a comunidade de West Side, entretanto, que ocorre um momento lindo e também coroado pelo estupendo senso de continuidade da série.


No início da temporada vimos essa mesma reunião, com as mesmas pessoas inclusive. O crime reinava em West Side, as esquinas estavam contaminadas pelo tráfico e ninguém podia caminhar com segurança pelas ruas. Uma senhora de cabelo rastafári, cansada da lenga-lenga policial de sempre, levanta-se e pede por mudanças. Reais e efetivas mudanças.


Bunny atende seu pedido, e vários episódios depois voltamos ao mesmo lugar mas em situações totalmente diferentes. A reunião é bem-humorada, os assuntos são banais e a mesma senhora sente novamente a necessidade de falar. O que ela diz transcende a definição de “bom” ou “ruim” para o experimento de Hamsterdam. Independentemente da legalização ou não das drogas, o que ela quer é uma comunidade. Um lugar onde os moradores conheçam os policiais que trabalham em sua região, que até mesmo conversem com eles. Pode parecer um pedido ridículo e que não se aplica na atualidade, mas será que é mesmo impossível? Será que a polícia sem rosto que temos hoje não seria mais eficaz se conhecêssemos os oficiais da lei? Será que policiais atirariam tão facilmente em pessoas suspeitas, como no chocante caso da semana passada onde um oficial branco deu oito tiros pelas costas de um negro nos EUA, se soubessem quem elas são? Será que o trabalho investigativo não seria melhor conduzido se os oficiais da lei tivessem informantes espalhados por todos os lugares simplesmente por serem amigos deles, algo que Bunny chega a pedir de Carver no episódio anterior?


O outro momento que me atingiu, e que passou desapercebido na primeira vez que assisti ao episódio, é o pequeno campeonato que Cutty propõe entre seus boxeadores novatos e os garotos de outra academia. A cena a princípio parece estranha e incômoda, cortando cenas interessantes para mostrar apenas uma incessante surra no garoto de West Side. Entretanto, enquanto eu assistia a cena a verdade me atingiu e me emocionou. Vejam só, The Wire está sendo otimista.


É claro desde o princípio que a série não possui uma visão muito otimista de mundo. As temporadas acabam em tragédia, personagens morrem e investigações vão para o buraco. Nada se resolve. Entretanto, a luta do pupilo de Cutty é uma pequena luz nesse imenso túnel de escuridão. Durante toda a temporada Stringer, Bunny, McNulty e outros personagens tentam imprimir mudanças na ordem geral das coisas. Eles não conseguem. Stringer não consegue alcançar um acordo com Marlo para acabar com o banho de sangue, McNulty não consegue mudar o pensamento pré-histórico de um departamento cujos membros estão apenas preocupados em subir de posto e Bunny não consegue convencer vários de seus oficiais de que bater e prender não são sempre as melhores soluções. Eles apanham, e muito.


Entretanto, ao final da luta eles são simbolicamente aplaudidos pela pequena audiência do campeonato de Cutty. O garoto que não tinha nenhuma habilidade e estava em clara desvantagem, sozinho diante de um gigante que poderia ser tanto um menino mais habilidoso quanto um modo de pensar enraizado na mente da coletividade, pareceu ter ganhado. Ele não ganhou, mas pelo menos tentou. Numa temporada que tem como seu tema principal a mudança, não há mensagem mais poderosa que essa depois de onze episódios mostrando como ela é extremamente difícil de ser alcançada.





Por: Série Maníacos

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